Palcos vazios, apartamentos apinhados. Curadoria performativa das artes performáticas.

by Florian Malzacher

In: Cartografias. Revista de Artes Cênicas 5 (2018): 226-240.


Vamos começar com uma imagem: duas, três pessoas, solitárias, espalhadas por volta da meia-noite em um auditório art déco do teatro Vooruit em Gante, na Bélgica. Recostadas meditativamente em seus assentos de pelúcia sob balcões e ornamentação duvidosa, elas observam em silêncio o palco semiaceso abaixo das letras douradas brasonadas no proscênio como uma legenda: “Kunst veredelt” (“arte enobrece”). No palco em si, nada além de beliches. Algumas pessoas dormem; uma está roncando, outra somente se despindo.

Os coreógrafos alemães Kattrin Deufert e Thomas Plischke colocam este espetáculo improvável, modesto, no centro de seu projeto curatorial B-Visible1, um programa que consiste em performances, palestras e outras intervenções espalhadas à larga ao longo de 72 horas. Ocorrem em todos os lugares do teatro – exceto em seu coração, o palco principal, o centro de atenção por definição. Aqui ele está completamente silencioso, um refúgio para quem quer que deseje fazer uma pausa.

B-Visible define uma possível compreensão de curadoria nas artes performativas como algo diferente de somente programar os espetáculos da temporada. A forma como até mesmo espaços de teatro clássicos podem ser desafiados ao serem abordados e confrontados em sua especificidade – e dentro de convenções de tempo. Utilizando suas limitações como atritos produtivos (e em relação à arquitetura: usando lógica reversa) e ao mesmo tempo levando-os radicalmente a sério (em termos de tempo: afinal, teatros são construídos para manter a vida diária afastada, então por que também não ignorar completamente o tempo real do mundo lá fora?).

deufert&plischke tocaram exatamente neste elemento central do teatro – criando a experiência de uma comunidade temporária em relação ao tempo e ao espaço – usando-os como seus principais recursos de curadoria. Há muito mais a ganhar do que a maior parte dos programas de festivais ou temporadas de espetáculos oferece para nos satisfazer.

“Diaghilev, o curador mais importante do século XX”

Se o termo curadoria – obviamente emprestado das artes visuais – é a melhor escolha no contexto das artes ao vivo é algo passível de discussão. Mas dentro do campo das artes performativas a que me refiro (um teatro que se recusa a ser definido pelos limites do drama, das divisões convencionais entre representação teatral e público, das impostas limitações de gênero. Um teatro que antes de tudo se encontra fora das estruturas fixas e das estéticas relativamente fixas dos teatros de repertório da cidade, que são mais ativos principalmente dentro dos limites de seus próprios países e idiomas) ele pode ser apropriado.  Termos, conceitos e definições são um aspecto problemático seja lá como for: já a questão de como nomear o gênero (artes performativas, teatro experimental, teatro pós-dramático, teatro colaborativo, artes de palco, dança conceitual etc. etc.) é tema de grande controvérsia. O motivo pelo qual eu acho salutar promover o conceito de curadoria neste playground estético altamente questionado é precisamente devido às expectativas que ele desperta: expectativas que propõem um desafio claro para todos que se denominam curadores. Essa distinção não visa badalos ou prestígio, mas objetiva uma mudança na compreensão das possibilidades e pretensões de uma programação artística, assim como compreendê-la como um ato performativo em si.

  1. B-Visible, curadoria dos coreógrafos Kattrin Deufert e Thomas Plischke, junto com o dramaturgo Jeroen Peeters, apresentado no Kunstencentrum Vooruit, Gante/Bélgica em novembro de 2002.